Retrato Íntimo
Nos bastidores de uma campanha ruidosa, sobram Marta e o silêncio

São 10h26 da manhã de terça-feira quando o elevador do lóbi de um três estrelas de Viana do Castelo se abre para deixar sair Marta Temido, de fato azul de linho e blusa florida, com uma mochila cinzenta Converse às costas e uma mala de viagem aos pés. Do cubículo de espelho e mármore saem ainda dois elementos da equipa socialista, que dão tempo para que a ex-ministra da Saúde caminhe sozinha até ao balcão onde ela própria faz o check-out e garante ao recepcionista, que recebe alegremente a chave do quarto 509, que passou bem a noite.
A cabeça de lista do PS às europeias, de 50 anos, chegou ontem àquele hotel situado no centro de Viana do Castelo, por volta das duas da manhã, e só acordou às 9h do dia seguinte. “Um luxo asiático”, confessa ao Polígrafo - um desabafo que repetirá mais vezes ao longo do dia, nomeadamente quando percebe que estranhamente terá tempo para almoçar.






Sem rádio, neste carro só se ouve burburinho
O primeiro compromisso do dia está marcado para daqui a 18 minutos. Não há margem para mais preparação antes das primeiras declarações à imprensa e a máquina socialista parece estar tranquila com esse facto: as últimas sondagens têm-lhes garantido vantagem sobre a lista liderada por Sebastião Bugalho, o que faz com que não tenham que as minimizar, como aconteceu durante as legislativas. Ainda assim, o peso da última derrota ainda paira na comitiva, que não se cansa de elogiar a boa disposição de Marta Temido - e de projetar nela uma viragem política.
O briefing com a equipa de campanha, onde pontificam figuras como David Damião, ex-assessor de Guterres, Sócrates e Costa, e Pedro Espírito Santo, ex-chefe de gabinete em São Bento, foi feito durante o pequeno-almoço. Agora, já no Peugeot 3008 conduzido por Vitor, de óculos escuros e camisa axadrezada, Marta Temido pousa a mochila aos seus pés, semi cobertos por umas sabrinas amarelas rendadas. Estão 23 graus em Viana do Castelo, com tendência de subida. Enquanto limpa as lentes dos RayBan Aviator, Temido inicia conversa com o motorista.
- “Sr. Vitor, veja só as suas orientações porque eu hoje não lhe sei dizer nada, ‘tá bem?”
O condutor anui, o que não significa que vá cumprir à regra o percurso de 1,2 quilómetros, que se fazem em quatro minutos, até ao Navio Hospital Gil Eanes. O caminho é propositadamente prolongado para que Marta Temido, que põe imediatamente o cinto, tenha a possibilidade de falar durante mais tempo. Primeiro - sem que lhe perguntem - sobre o que traz na mochila. Depois, para desmontar teorias sobre as cores que veste quase todos os dias.
“Se fosse inverno andava sempre de escuro, mas agora no início da primavera a gente começa a usar mais cor”, afirma. De facto, Temido vai no nono dia de campanha e é rara a manhã em que não se apresenta aos jornalistas com uma peça azul ou amarela - por vezes ambas combinadas.
No banco pendura do carro cinza escuro, em vez de David Damião segue agora um fotógrafo. Atrás, em vez de Pedro Espírito Santo, está o Polígrafo. A rádio não toca. Ainda que tenha enviado ao jornal “Observador” uma playlist de campanha mais ou menos preenchida, com Xutos, Capicua e U2, no SUV a candidata não permite, para tristeza do motorista, sequer um instrumental. “O sr. Vitor é uma vítima do meu gosto pelo silêncio. Lá fora é tudo muito agitado e ruidoso. Às vezes entro no carro e ele tem a música mesmo muito baixinha e eu digo: ´Sr. Vitor… Então agora já sabe, não é?´”
O motorista, que ainda agora começou a conduzir, anui pela segunda vez em pouco mais de um minuto. É provável que estranhe as interações dentro do veículo, já que é raro conversarem ali dentro. Temido vai focada nos objetos que traz dentro da mochila e “num saco de pano” que fica na mala. É uma tote bag, que entre as legislativas e as europeias passou dos jotinhas para os candidatos, que agora também distribuem propaganda de campanha.
O primeiro objeto que mostra à câmara é um caderno de apontamentos, cuja vida é extremamente curta: Marta Temido escreve espaçadamente com uma ponta azul, sublinha com marcadores verdes, laranja e cor-de-rosa “para fixar” e risca o que não importa; quando preenche a última folha, prepara-se para rasgar tudo e deita o bloco fora.
Além do material de papelaria, a socialista carrega água, telemóvel, chave de casa - apesar de só seguir para Lisboa dali a dois dias -, lenços de papel, uma carteira e uma escova de dentes para “refrescar”. Hoje não terá tempo para voltar ao hotel para um banho, como fez na Guarda dias antes. “Ajuda muito ficar ali uns minutos. Nunca chega a uma hora, mas ajuda bastante”, diz.



"O sr. Vitor é uma vítima do meu gosto pelo silêncio. Lá fora é tudo muito agitado e ruidoso"

Traída pela língua
O carro aproxima-se do Navio Hospital Gil Eanes, onde os jornalistas, os guias do museu e alguns conhecidos socialistas já esperam Marta Temido, que está atrasada. Marina Gonçalves e Tiago Brandão Rodrigues, ex-colegas de Governo, recebem-na com um abraço e "capturam-na" durante alguns segundos. As caras menos conhecidas da campanha tentam ceder-lhe a passagem:
“Foda-se, tem que ser ela a entrar primeiro”
Enquanto Marta Temido percorre o interior do navio, com corredores claustrofóbicos onde mal cabem todos os que entraram, a equipa de assessores estuda freneticamente as ruas de Viana, completamente despidas. Nas esplanadas estão sentados alguns turistas e Temido até tem treinado o inglês - apesar de conhecer muito melhor o francês, como confessaria ao Polígrafo mais tarde -, mas o cenário quase desértico está longe de ser o ideal para uma tradicional ação de rua.
Quando sai do interior do barco em direção ao leme, partilha com os jornalistas meia dúzia de soundbytes e apercebe-se de que, agora sim, está demasiado calor. O primeiro instinto é procurar a água, mas a mochila ficou no carro. Como não quer incomodar ninguém, dirá mais tarde ao Polígrafo, prepara-se para quase uma hora de rua sem líquidos.
Entre 2022 e 2024, o PS perdeu eleitores naquela cidade (quase cinco mil), mas é manhã de quarta-feira. A equipa desdramatiza e Marta Temido também: sabe que terá de entrar, como fez nos últimos dias, em cada porta aberta. E que a conversa, se quer que exista, terá que ser iniciada por ela.
Quando encontra um par de jovens na esplanada de um café pergunta se pode deixar um papel. A resposta demora a chegar. E, quando chega, vem em inglês:
“We are not portuguese”
“I’m sorry”, desculpa-se Temido, “Where are you from?”
“UK”, respondem.
Aproxima-se Tiago Brandão Rodrigues, cujo humor vinha a ser treinado com os camaradas desde o início do dia.
“Shame on You”. E faz rir todos à sua volta.
Com ruas vazias, o segredo é entrar em lojas
É rara a ocasião em que Marta Temido prolonga a conversa por mais que alguns segundos e vai além do “obrigada”. Por essa razão, as pausas são curtas: os jornalistas, que acompanham a líder socialista há quase duas semanas, estão visivelmente cansados. Sem tinta verde ou arremesso de vasos, a campanha murcha substancialmente. É por isso que, quando a candidata trava para entrar no número 46 do Largo João Tomás da Costa, uma loja com mais de meio século que vende bordados de Viana, as câmaras vão imediatamente atrás de si.
Conceição Pimenta, dona da “Casa Sandra”, nem acredita no que vê:
“É totalmente diferente do que se vê na televisão. É tão querida. Quero agradecer-lhe pelo que fez no tempo do confinamento…”
Marta Temido não a deixa terminar a frase, como faz com todos os que a recordam como ministra:
“Isso não é nada. Já lá vai.”
Quando comete o erro de elogiar demasiado os bordados, é obrigada a recusar todo o tipo de ofertas que Conceição lhe faz. Uma bolsa para pôr à cintura, um xaile típico da região, um lenço dos namorados…
“Não posso aceitar, dona Conceição. Mas a gente volta em breve.”
Temido não voltou, mas a sua equipa sim. Para comprar um lenço e um par de bonecos - o Manel e a Maria - sugerindo que a cabeça de lista os leve consigo para Bruxelas. Ali, a resposta é sempre “sim”.
Ainda em Viana do Castelo, a socialista entra numa loja de ferragens com produtos caricatos, como percebe de imediato. Um “Tablet do Salazar”, que é na verdade uma ardósia, um sapo de caco à entrada e um dono que recusa estereótipos.
Ao Polígrafo, que questiona se o sapo se destina a afastar a comunidade cigana, o homem de cerca de 60 anos nega que assim seja. Quer apenas “saber quando entra alguém”. Afinal, naquela loja toda a gente “é bem-vinda”. Até a candidata do PS.


“Menina Covid” ou “Lady Di”: todos lhe poupam o nome
Quando não está a prestar declarações à imprensa, Marta Temido perde toda a solenidade. A equipa finge incomodar-se, mas o facto é que as suas prestações têm sido suficientemente eficazes para lhe dar alguma liberdade na rua: na manhã em Viana do Castelo, Temido comentou o Plano de Ação para as Migrações, apresentado na véspera pelo Governo, com uma abordagem muito específica.
Poderia invocar uma suposta aproximação do Governo à extrema-direita, mas Temido fez precisamente o contrário, ao acusar o Governo de ter escolhido de forma intencional o timing do anúncio precisamente para evitar qualquer leitura de aproximação à extrema-direita, portuguesa e europeia.
O tema tem sido um dos mais complicados da campanha: durante os debates, a candidata pelo PS acusou o seu principal oponente, Sebastião Bugalho, de fazer parte de uma família europeia que quer construir muros físicos nas fronteiras. Ao Polígrafo diria mais tarde, já a caminho de Bragança, que essa é possivelmente a grande mentira da campanha social democrata: “Há uma [mentira] que me incomoda, que é a negação de que o PPE quer construir muros na europa. E a negação de que a AD não está do lado do PPE. As frases são iguais, só que um diz com dinheiros europeus e outro diz que não aceita com dinheiros europeus.”
Depois de ser recebida, ainda em Viana, com filetes de pescada e salada russa no Café Sport - um momento raro de almoço - segue com a equipa para Braga. Os assessores voltam a ocupar os seus lugares no Peugeot e, juntamente com Marta Temido, começam a preparar o discurso que a candidata fará mais tarde, em Guimarães. É a primeira vez que atacará diretamente Sebastião Bugalho, suportada pelo apoio de Pedro Nuno Santos. Está na reta final da campanha e, mesmo com a cautela que lhe pedem internamente, joga todas as fichas.
São 15h59 quando chega ao Arco da Porta Nova, onde nem toda a gente parece conhecê-la.
“Não vi quem era”
“Era a da saúde, a menina da Covid..”, conferenciam duas mulheres à porta de um estabelecimento onde acaba de passar a entourage socialista.
A memória coletiva sobre o período da pandemia parece ser agora positiva, mas Temido não esconde que com alguns profissionais de saúde a relação ainda é complicada e que as abordagens são muitas vezes frias.
Do confinamento, Temido lembra apenas os momentos de tensão com pessoas anti-vacinas, no metropolitano de Lisboa, por exemplo. “Diziam: ‘Isto vai-nos matar a todos’; ‘Vocês querem é enriquecer as farmacêuticas’; ‘Eu conheço não sei quantas pessoas que morreram’. Ou então pessoas que diziam que as vacinas tiveram efeitos secundários. Esse discurso deixa-me muito desconcertada.”
Muito depois do início da arruada, já ao lado do secretário-geral do PS, Temido é surpreendida por uma mulher que lhe diz que recebe apenas 300 euros de reforma. Um clássico na campanha socialista mas um evento isolado naquele dia estranhamente calmo. Marta Temido desenvolve a conversa. Afinal, tem tempo. À medida que o diálogo evolui, a cabeça de lista do PS rapidamente esquece a pensão e concentra-se no drama de saúde que está a viver aquela mulher. Tem cancro. Temido pergunta-lhe onde está a ser tratada e por quem. A mulher responde e deixa-lhe um pedido:
“Quero que olhe por nós.”
Quando interage com populares, a socialista fá-lo frequentemente à revelia dos seus colaboradores: “Às vezes zango-me com quem está comigo quando tentam impedir-me de responder; as pessoas precisam de desabafar e de partilhar as suas zangas.”
Na cidade cuja autarquia é dominada há anos pelo PSD, a socialista insiste em entrar em todos os comércios da Rua do Souto, uma das mais icónicas em Braga. Ao lado de Pedro Nuno Santos, Carlos César, presidente do partido, Bruno Gonçalves, número quatro da lista, e Inês Rodrigues, também candidata do PS, entra no número 26. Aqui, na Casa das Bananas, brinda, pela primeira vez hoje, com moscatel. Do lado de fora, duas mulheres sobem-lhe consideravelmente o ego.
“É a substituta da Lady Di. Pena ser pequenina”
“É parecida”, responde a menos crente.
“Não é parecida. É mesmo a substituta”, corrige a primeira mulher.
Temido sente a agenda do dia a caminhar para o fim. A equipa comenta atrasos, os jotas são pressionados a caminhar mais rápido e os cânticos já só se ouvem de vez em quando, se a marcha vai silenciosa. Ainda haverá tempo, às 17h16, para entrar n’A Brasileira, onde o elenco tomará um café à varanda, cercado por jornalistas. É lá que a socialista recebe o segundo presente do dia, um boneco em caco que também promete levar para Bruxelas. Quando finalmente a marcha começa a dissipar-se, Temido já só leva consigo, até ao carro, um saco cheio de fidalguinhos. Não foi ela que os comprou - e tudo indica que não será ela a comê-los.





Permissão para falar
Há várias horas que a candidata não está sozinha. Desde que acordou em Viana do Castelo até ao momento em que entrou no carro para seguir viagem até Guimarães já distribuiu dezenas de flyers, beijinhos e apertos de mão, sempre cercada por uma equipa que não lhe tira os olhos de cima. A pressão aliviou com a chegada de Pedro Nuno Santos, que lhe roubou o foco em vários momentos, mas não foi suficiente. Agora que faltam cerca de duas horas para o comício, a entrada na viatura é interdita: há um discurso para preparar.
Vão falar Carlos César, Marta Temido e Pedro Nuno Santos, por esta ordem. Quando chega a sua vez, não pensa duas vezes: vai mesmo avançar com o primeiro ataque direto pensado a Sebastião Bugalho. Já o considerara imaturo, no debate entre os oito candidatos, transmitido na RTP a 28 de maio, mas desta vez escreveu-o.
“Há um lugar muito especial para aqueles que são futuro e o futuro são os nossos jovens. Só que não basta ser jovem para defender os jovens e há por aí quem acha que basta ser jovem para defender os jovens. O que faz a diferença é a força das nossas ideias. A juventude da idade de certos candidatos contrasta muito com o seu pensamento antiquado. É assim nos direitos das mulheres”, argumentou.
É enquanto discursa que Temido se emociona pela primeira vez hoje. No Largo de Donães, rodeado de casas e prédios de arquitetura clássica, a socialista troca olhares com uma mulher de idade e, acredita, de mobilidade reduzida, sentada à varanda de sua casa, um quarto andar vimaranense. No palanque e já fora dele, a candidata não deixa de olhar para a senhora: “Quando comecei a falar, atirei-lhe um beijo e ela levantou o punho e fez o sinal do PS. Soube muito bem.”
O Peugeot, onde ainda está Vitor, prepara-se para levar Marta Temido até Bragança, onde a campanha prosseguirá na manhã seguinte. Já com o carro em andamento, volta a falar com o Polígrafo: faz um balanço do dia, considera, a medo, que correu tudo bem, e reflete sobre o futuro. Sabe que os próximos anos serão um quebrar de rotinas. Deixará de comprar o pão fresco na mesma padaria lisboeta todas as manhãs ou de aproveitar com calma o lanche da manhã, por exemplo. Mas deixa a garantia de que o colar “protetor” que traz ao pescoço, que era da sogra e que lhe foi oferecido pela enteada, não vai sair dali.
Quando a campanha terminar, promete arrumar tudo o que enfiou nas malas, rasgar todos os papéis de apontamentos e “dormir até acordar”. Assim que acaba de dizer esta frase, ri à gargalhada. Já só faltam 200 quilómetros.


